“O presente estudo visa analisar, sob a ótica jurídica, os casos em que, eventualmente, possa o sujeito ativo da Lei Maria da Penha ser pessoa do sexo feminino.”
Por Denis Schlang Rodrigues Alves
Muito se discute, atualmente, se uma mulher pode figurar como autora na violência doméstica e familiar contra uma outra mulher, caso em que se aplicaria a Lei 11.340/06 (Lei Maria da Penha) para a sua defesa com as consequentes medidas disponibilizadas de proteção à vitima, notadamente a concessão das medidas protetivas de urgência, insculpidas nos artigos 22, 23 e 24 do mencionado diploma legal.
Nesse viés, impende ressaltar que no tocante aos casos de união homoafetiva entre mulheres resta transparente a possibilidade de aplicação da Lei 11.340/06, em ocorrências de delitos praticados por uma mulher contra a sua companheira homoafetiva, mormente por força do artigo 5º, parágrafo único, da referida lei.
Todavia, nos demais casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, no quais a autoria venha a ser atribuída à uma outra mulher, extrai-se o entendimento que será a seguir estudado.
2 – Da violência doméstica e familiar contra a mulher baseada no gênero
Inicialmente, insta frisar que a Lei 11.340/06 foi criada para proteger a mulher em razão da sua inferioridade ou vulnerabilidade em relação ao agressor de modo que, a princípio, a mulher jamais poderia figurar como autora de qualquer delito que estivesse figurando como vítima uma outra mulher, conforme se depreende da leitura do artigo 5º da citada lei, in verbis:
Artigo 5º: Para os efeitos desta lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial (…).
Nesse diapasão, visando esclarecer o que se entende pela violência de gênero mencionada na Lei Maria da Penha, o ilustre jurista Edison Miguel da Silva Jr, passou a explicá-lo da seguinte forma:
“(…) aquela praticada pelo homem contra a mulher que revele uma concepção masculina de dominação social (patriarcado), propiciada por relações culturalmente desiguais entre os sexos, nas quais o masculino define sua identidade social como superior à feminina, estabelecendo uma relação de poder e submissão que chega mesmo ao domínio do corpo da mulher”[1].
Destarte, resta cristalina a intenção da lei em proteger a mulher contra o sexo oposto, eis que o artigo 5º do aludido mandamento legal estabelece ser violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero, ou seja, a violência exercida pelo homem sobre a mulher em uma relação de poder e submissão.
Ademais, com a devida vênia aos entendimentos contrários, caso fosse aplicada a Lei 11.340/06 à toda e qualquer mulher que tenha sofrido um crime por uma outra mulher em âmbito doméstico e/ou familiar, sem que tenham relação homoafetiva, ao total arrepio da lei, seria realizado o esvaziamento conceitual em que está situada a grave nódoa da violência de gênero, de modo que, em não havendo configurados os elementos necessários à aplicação legítima da Lei 11.340/2006, estaria sendo permitida a realização de diferenciações injustificadas que iria de encontro ao valor supremo constitucional da isonomia, como bem leciona o eminente doutrinador Guilherme de Souza Nucci, senão veja-se:
“(…) interpretar o mencionado artigo 5º, ignorando a exigência da relação de gênero para qualificar a conduta ou simplesmente atribuir ao termo gênero o mesmo significado de mulher, violaria o princípio constitucional da igualdade de sexos, pois ‘o simples fato de a pessoa ser mulher não pode torná-la passível de proteção penal especial’ (NUCCI, 2007:1043). Enfim, sob pena de inconstitucionalidade, violência doméstica não se confunde com violência de gênero[2]”.
3 – Do requisito da existência da situação de vulnerabilidade da vítima frente ao agressor ou a motivação de gênero para a aplicação da Lei 11.340/06
Nesse cenário, vale salientar que ainda que existam entendimentos no sentido de ser possível o sujeito ativo da violência doméstica ser mulher, fato é que para tanto é necessário o requisito da existência da situação de vulnerabilidade da vítima frente ao agressor ou a motivação de gênero, tendo, como motivação, dessa forma, a opressão à mulher (fundamento de aplicação da Lei Maria da Penha), e não apenas a ocorrência de uma simples agressão moral, física, psicológica ou patrimonial da vítima em razão de desavenças, conforme já se manifestou diversos pretórios pátrios, principalmente o egrégio Superior Tribunal de Justiça. Nesse sentido:
[…] 1. Delito de lesões corporais envolvendo agressões mútuas entre namorados não configura hipótese de incidência da Lei 11.340/06, que tem como objeto a mulher numa perspectiva de gênero e em condições de hipossuficiência ou vulnerabilidade. 2. Sujeito passivo da violência doméstica objeto da referida lei é a mulher. Sujeito ativo pode ser tanto o homem quanto a mulher, desde que fique caracterizado o vínculo de relação doméstica, familiar ou de afetividade, além da convivência, com ou sem coabitação. 2. No caso, não fica evidenciado que as agressões sofridas tenham como motivação a opressão à mulher, que é o fundamento de aplicação da Lei Maria da Penha. Sendo o motivo que deu origem às agressões mútuas o ciúme da namorada, não há qualquer motivação de gênero ou situação de vulnerabilidade que caracterize hipótese de incidência da Lei 11.340/06[3].
[…] 2. Com efeito, tenho que, inicialmente, não se pode enquadrar a conduta dos pacientes como sendo de violência doméstica ou familiar, já que a relação entre réu e vítima não se enquadra entre as previstas no artigo 5º da Lei 11.340/2006; 3. Ainda que assim não fosse, no caso, a Lei 11.340/06 não seria aplicada, pois não se cuida de situação relacionada a vulnerabilidade, hipossuficiência, inferioridade física ou econômica existente entre agressor e vítima. Não havendo hipossuficiência e/ou vulnerabilidade entre as partes, não há o menor risco de motivo que enseje a aplicação da legislação penal especial; 4. Dessa forma, está-se a tratar, em tese, diante do delito previsto no artigo 147, caput, do Código Penal, que prevê pena de detenção de 1 a 6 meses. Assim, a competência para julgar o fato é do Juizado Especial Criminal; 5. Ordem concedida para que os autos sejam da representação sejam encaminhados ao juizado especial competente[4].
PROCESSO PENAL. CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO. JUIZADO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER E JUIZADO ESPECIAL CRIMINAL. MAUS-TRATOS. MÃE E FILHA. VIOLÊNCIA DE GÊNERO NÃO DEMONSTRADA. COMPETÊNCIA DO JUÍZO SUSCITADO PARA PROCESSAR E JULGAR O FEITO. 1. A lei 11.340/2006 é de aplicação restrita e deve incidir apenas quando a ação ou omissão que configurem a violência doméstica e familiar possuam motivação de gênero e há uma situação de inferioridade ou vulnerabilidade da ofendida em relação ao agressor. 2. Se os maus tratos infligidos à criança do sexo feminino decorrem da vulnerabilidade decorrente da condição de filha, em face da sua criação e educação, sem qualquer conotação motivada pelo gênero mulher, não há aplicação da lei maria da penha. 3. Conflito conhecido para declarar competente o juízo suscitado[5].
CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. LEI “MARIA DA PENHA” (LEI 11.340/06). COMPETÊNCIA PARA PROCESSAMENTO E JULGAMENTO DE AMEAÇA E/OU VIAS DE FATO DE FILHA CONTRA MAE. VIOLÊNCIA NÃO BASEADA EM GÊNERO. 1. O Juiz suscitante alega que a competência é do Juizado Especial Criminal, em razão da igualdade de gênero entre vítima e suposta agressora, ao passo que o suscitado aduziu que é da 4ª Vara Criminal, por se tratar de violência doméstica atinente à Lei Maria da Penha. 2. Não incide a Lei 11.340/06 em suposta ameaça e/ou vias de fato envolvendo filha e mãe pela ausência violência baseada no gênero. CONFLITO DE COMPETÊNCIA PROCEDENTE[6].
RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. CONTRAVENÇÃO PENAL. PERTURBAÇÃO DE TRANQUILIDADE. AUSÊNCIA DE QUESTÕES DE GÊNERO. RELAÇÃO FAMILIAR ENTRE MÃE E FILHA, QUE, POR SI SÓ, NÃO ENSEJA A APLICAÇÃO DA LEI MARIA DA PENHA. COMPETÊNCIA DO JUIZADO ESPECIAL CRIMINAL. O caso em tela remete a situação em que a filha da vítima, após dirigir-se embriagada a sua residência, teria começado a ofendê-la, em voz alta, sendo que as palavras teriam sido ouvidas pelos vizinhos, causando constrangimento na vítima. As suspeitas que recaem sobre a recorrida não revelam prevalecimento de relações de gênero apenas porque ocorreram em ambiente familiar. O fato de a vítima ser do sexo feminino não foi decisivo para a prática do delito. Como instrumento de combate a uma violência historicamente sedimentada, a Lei 11.340/2006 almeja muito mais do que a ampliação do âmbito de aplicação da lei penal ou do que a judicialização dos conflitos domésticos. Competência do Juizado Especial Criminal e não do Juizado da Violência Doméstica e Familiar. RECURSO EM SENTIDO ESTRITO DESPROVIDO. UNÂNIME[7].
EMENTA: CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA LESÃO CORPORAL DE ÂMBITO FAMILIAR – ART. 129 § 9º DO CP – CRIME SUPOSTAMENTE PRATICADO PELA FILHA CONTRA A MÃE – NÃO EVIDENCIADA SITUAÇÃO DE FRAGILIDADE OU VULNERABILIDADE PROVENIENTE DO GÊNERO MULHER INEXISTÊNCIA DE RELAÇÃO DE SUBORDINAÇÃO – A AGRESSÃO TERIA OCORRIDO APÓS UMA DISCUSSÃO POR MOTIVO BANAL, EM RAZÃO DE UM VIDRO DE ACETONA QUE A FILHA HAVIA PEGADO EMPRESTADO DA MÃE, QUE AO SABER, RETIROU DE SUAS MÃOS – INAPLICABILIDADE DA LEI 11.340/06 – COMPETÊNCIA DO JUÍZO DA 32ª VARA CRIMINAL DA CAPITAL. Conflito negativo de competência suscitado pelo I Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher da Capital, apontando como competente o Juízo de Direito da 32ª Vara Criminal da Capital. Tratando-se de suposta lesão corporal de filha contra a mãe, no interior de sua residência, podemos falar que existe vínculo afetivo entre as envolvidas, porém, a violência não se deu em razão da vulnerabilidade da mãe, mas sim, em razão de uma discussão entre as duas, o que afasta o procedimento elencado na Lei Maria da Penha. Isto porque os fatos narrados na exordial não revelam uma relação de dominação-subordinação da mãe com sua filha. Também não restou evidenciada a situação de vulnerabilidade experimentada pela suposta ofendida, não havendo qualquer ligação com a violência que o legislador pretendeu coibir com o advento da Lei Maria da Penha. PROCEDÊNCIA DO CONFLITO, firmando-se a competência do Juízo Suscitado[8].
4 – Da conclusão
Face ao exposto e considerando a doutrina e jurisprudência pátria, tal como já alhures abordada, entendo que, fora da situação da união homoafetiva prevista no artigo 5º, paragrafo único da Lei 11.340/06, a mulher somente pode figurar como autora de violência doméstica e familiar contra uma outra mulher, no caso da existência da situação de vulnerabilidade da vítima frente à agressora ou em razão da motivação de gênero, ou seja, havendo necessariamente como motivação da violência a opressão à mulher, caso em que se aplicaria o aduzido diploma legal com os seus diversos dispositivos de proteção à vítima.
FONTE: site Consultor Jurídico, disponível em: http://www.conjur.com.br/2015-nov-08/quando-sujeito-ativo-lei-maria-penha-sexo-feminino
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