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Recentemente nos deparamos com a notícia de um homem que teria sido morto em troca de tiros com militares fuzileiros navais, na ocasião em que esses flagraram o baleado assaltando um motorista em plena luz do dia, enquanto trafegavam pela manhã na avenida Brasil, na altura de São Cristóvão, no Rio de Janeiro. O caso parece, portanto, um homicídio doloso, ainda que em legítima defesa, considerando os fatos narrados pela imprensa. Investigação criminal de homicídio praticado por militar seja em serviço ou não, seja por membro das forças armadas ou pela polícia militar dos estados na legislação brasileira é crime comum, salvo se praticado no contexto de ação militar realizada na forma do artigo 303 do Código Brasileiro de Aeronáutica, por força da Lei 9.299/1996 e subsequente Lei 12.432/2011. Insta ressaltar que as forças armadas quando empregadas em patrulhamento ostensivo exercendo função tipicamente de policiamento preventivo a serviço da segurança pública dos estados a competência do julgamento é da Justiça comum como decidiu a 2ª Turma do STF no HC 112.936/RJ (DJe-93 de 19/5/2013, rel. min. Celso de Melo), no caso de um desacato praticado por civil contra militar das forças armadas, ainda que haja no Código Penal Militar (CPM) um delito correspondente, qual seja o artigo 299 do CPM. Em outras palavras, o que o STF entendeu foi de que a atividade desempenhada pelo militar na ocasião se se tratava de ação tipicamente militar, bem como não houve violação a bem jurídico estritamente militar. Há, contudo, decisão do Superior Tribunal Militar[1] entendendo que o crime de homicídio praticado por militar das forças armadas, ainda que em patrulhamento típico de segurança pública, e3m circunstâncias idênticas como ocorreu no caso acima mencionado (patrulhamento ostensivo em atividade de segurança pública dos estados), a competência é da Justiça Militar, tendo em vista que, segundo do Superior Tribunal, a Lei 9.299/96 deve ser interpretada conforme a redação da EC 45/2004, que alterou o artigo 125, parágrafo 4º da Constituição, que ressalva expressamente a competência do júri, Justiça comum, para jugar militares pelo crime de homicídio contra civil, porém, referida emenda não fez a mesma ressalva no artigo 124 da CF, para julgamento dos crimes praticados por militares das forças armadas, chegando o STM à conclusão de que os homicídios praticados por membros das forças armadas contra civil a competência seria da Justiça Militar e não da Justiça comum. Essa decisão do STM vai na contramão da jurisprudência do STF[2] e da Corte Interamericana de Direitos humanos, bem como das razões processuais pelas quais esta alteração implica, como, por exemplo, a de que a Justiça Militar da União julga crimes militares, sendo possível julgar civis também, enquanto a Justiça Militar dos estados julga crimes militares e militares, consequentemente não poderia julgar civis, ainda que pratique crimes militares. Em outras palavras a EC 45/2004 ao incluir o homicídio contra civil em seu texto o fez para evitar justamente a interpretação que o texto mais novo teria tornado a lei infraconstitucional incompatível. A investigação criminal por qualquer órgão que não seja a polícia judiciária, presidido pelo delegado de polícia é um fato grave e que avilta a noção republicana de divisão de funções do Estado de modelo democrático. A Constituição da República é um documento que tem como escopo, primordialmente, dentre outros de mesma densidade, servir de anteparo para contenção de massas, ou seja, da vontade da maioria, ao contrário do que leigamente se propaga: “A maioria não pode dispor de toda a ‘legalidade’, ou seja, não lhe está facultado, pelo simples facto de ser maioria, tornar disponível o que é indisponível, como acontece, por ex., com direitos, liberdades e garantias e, em geral, com toda a disciplina constitucionalmente fixada (o princípio da constitucionalidade sobrepõe-se ao princípio maioritário)”[3]. Diante disso, passa a ser o documento legitimador, que seleciona a divisão de atuação dos órgãos públicos na persecução criminal, separando e delimitando a atuação de cada qual, explicitamente[4], sendo os destinatários destas verdadeiras normas jurídicas ao próprio legislador e aos operadores do Direito. Normas que se revertem como um verdadeiro manto protetor, esculpido no mármore das garantias, contra o abuso do poder punitivo do Estado, na qual é evidente que se engloba o poder persecutório. Seria cômico se não fosse uma tragédia jurídica de flagrante inconstitucionalidade e ilegalidade, ocasionada muitas vezes pelo próprio Estado-juiz, que permite, algumas vezes, investigações pela polícia militar ou forças armadas, por exemplo, utilizando-se anacronicamente a Polícia Militar como braço investigativo do Ministério Público, ambos os modelos de mesma simbologia autoritária, diante de convênios que se sobrepõem a própria ordem constitucional, enveredando ambas as instituições um verdadeiro messianismo político[5] e jurídico. Note-se que a Polícia Militar, uma nobre e heroica instituição, foi incumbida de exercer o policiamento ostensivo, de repressão destinada à preservação da ordem pública e da incolumidade de pessoas e de patrimônio. Outrossim, a Constituição de 1988, autorizou que o inquérito policial militar somente fosse utilizado para o cumprimento do mister de funções de polícia judiciária quando o crime possuir natureza militar, tão e exclusivamente, questão que não foi enfrentada pelo STM posto que, ao contrário, considerou o homicídio como um crime militar, sem reconhecer uma interpretação conforme do Código Penal Militar. Ainda assim, nesta mesma temática, mas agora, exemplificando com relação a lavratura do termo circunstanciado, acaso se entenda que não se trate de uma tentativa de homicídio, mas de uma lesão corporal se extrai do texto constitucional a vontade do constituinte originário em seu artigo 98, I, da Constituição, de que a lei ordinária conceitue o que seja infração penal de menor potencialidade ofensiva e assim sendo, estabeleça a estrutura dos juízes que comporão as juizados especiais, e como será o procedimento processual penal, incluindo-se a transação e sua estrutura recursal, conforme artigo 98, I da Constituição. Note-se que o artigo 98, I não alterou a constituição, e com isso não especializou o artigo 144, IV e V, parágrafos 4º e 5º, mas tão somente delegou ao legislador infraconstitucional que regulamentasse um sistema de controle social despenalizador, em nada alterando as atribuições das polícias.  Tomando por exemplo a lavratura do termo circunstanciado, assim surgiu a Lei 9.099/95, na qual o legislador ordinário quis atribuir maior celeridade ao procedimento justamente para efetivar-se uma justiça penal consensual pela Lei 9.900/1995, criando entre outros institutos, o “termo circunstanciado”, como procedimento investigatória célere, estabelecendo as regras de um procedimento tipicamente sumaríssimo para a investigação de menor potencial, que em tese, fosse também simples. Diante disso, o artigo 69 da Lei 9.099/1995 atribui a presidência da lavratura do termo circunstanciado à “autoridade policial”, e em nome de diversos princípios, um deles da eficiência, diversos doutrinadores, iniciaram seus “saltos triplos carpados hermenêuticos” parafraseando o eterno ministro Ayres Brito[6], iniciando-se uma série de aberratio interpretatio, ao ponto de se defender que qualquer pessoa pudesse ser “autoridade policial”, inclusive servidor do cartório lotado na secretaria dos juizados. Apuração preliminar de cognição sumaríssima não transforma o procedimento de investigação criminal de menor potencial ofensivo em terra de ninguém. O termo circunstanciado é um procedimento investigatório de crime comum[7]. Tanto o é que o artigo 91-A da Lei 9.099/95 veda sua aplicação aos crimes militares. Como se percebe, tanto para a investigação por crime de tentativa de homicídio como para a lesão corporal, quando de menor potencial ofensivo, é de uma clareza solar que a legislação tratou como um crime comum, o que evidencia maior harmonia de nossa legislação com a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, conforme veremos mais a diante. O que verificamos por estes precedentes destoantes, é um emaranhado de interpretação sistemicamente disforme, que “forma o que L.A. Becker chama de micro-legislação esterilizante da Constituição. E qualquer um deveria saber que por ausência de Lei em sentido estrito descabe ao ato administrativo revogar/modificar o Código de Processo Penal. Estamos no paraíso dos atos administrativos manipuladores da Constituição em nome da eficiência”[8]. Agregamos a esses argumentos, os precedentes que representam verdadeiros ativismos judiciais em seara legislativa, realizando o judiciário papel que envereda como um verdadeiro legislador, pois distingue situações claras de incidência e não incidência de garantias fundamentais, em terreno, costumeiramente negligenciado pela doutrina, qual seja a investigação criminal, o que representa ema perigosa zona de exceção, típicos de Estados de Exceção. Essas garantias (que incidem na investigação criminal) não passaram despercebidas pelos tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos, segundo aos quais dispõem como garantia do cidadão que a condução coercitiva em desfavor de um suspeito, este deve ser lavado imediatamente perante um juiz ou outra autoridade jurídica com os mesmos poderes que o juiz, em nosso ordenamento jurídico constitucional, o delegado de polícia. Este é o sentido do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos em seu artigo 9º, parágrafo 3º, bem como o artigo 7, item 5 da Convenção Americana dos Direitos Humanos. No Brasil, o delegado de polícia sempre teve competência, imparcialidade e independência, visto que não está subordinado ao Judiciário ou ao Ministério Público, tendo a lei 12.830/13 lhe concedendo ainda mais garantias com a sua inamovibilidade legal, que se distingue do Judiciário e do Ministério Público apenas pela hierarquia formal das normas, mas de acordo com os tratados sobre direitos humanos possui status de norma supra legal e materialmente convencional, por se tratar de uma garantia de proteção aos direitos humanos. Para não cometermos a leviandade de interpretar as referidas normas sobre direitos humanos fundamentais de forma desassociada com a hermenêutica da própria Corte Interamericana de Direitos Humanos, trazemos a baila trechos da sentença, no caso Caso Vélez Loor vs. Panamá[9], na qual o Panamá foi condenado por violação aos direitos humanos, onde a Suprema Corte Internacional realiza a mesma interpretação por nós lançada no presente artigo, in verbis: “Parágrafo 108, em tradução livre: “Este Tribunal considera que, para atender à garantia estabelecida no artigo 7.5 da Convenção em matéria migratória, a legislação interna deve assegurar que o funcionário autorizado pela lei para exercer funções jurisdicionais preencha as características de imparcialidade e independência que devem orientar todo órgão encarregado de determinar direitos e obrigações das pessoas. Nesse sentido, o Tribunal já estabeleceu que essas características não apenas devem corresponder aos órgãos estritamente jurisdicionais, mas que as disposições do artigo 8.1 da Convenção se aplicam também às decisões de órgãos administrativos. Uma vez que, em relação a essa garantia, cabe ao funcionário a tarefa de prevenir ou fazer cessar as detenções ilegais ou arbitrárias,é imprescindível que esse funcionário esteja autorizado a colocar em liberdade a pessoa, caso sua detenção seja ilegal ou arbitrária.” Para não corrermos o risco de desvirtuarmos do assunto inicialmente proposto, o trecho está sendo utilizado somente para explicitar que as normas sobre garantias fundamentais na jurisprudência da Corte IDH torna não somente a legislação que garante uma investigação criminal presidida por autoridade com as garantias emanadas da Lei 12.830/13 mais um instrumento de salvaguarda de direitos do investigado. Portanto, navegando por essas águas, além do Supremo Tribunal Federal[10] já ter decidido que são inconstitucionais as leis estaduais ou Constituições Estaduais, que estenderam a função de investigação de crimes comuns à polícia militar, conforme já explicitado pelo professor Henrique Hoffmann[11], esta vedação também já foi imposta pela Corte IDH, em razão do princípio da excepcionalidade de investigação de crimes comuns por militares. Dentre diversos casos, dentre os quais, há inclusive um em que o Brasil foi réu e condenado (Caso Escher vs. Brasil, que trata de investigação criminal com interceptação telefônica realizada pela polícia militar e autorizada pelo judiciário), destacamos o leading case Nadege Dorzema e outros vs. República Dominicana, por se tratar de homicídio de membro das forças armadas contra contra civil, julgado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, de fato ocorrido no dia 18 de junho, 2000 de diversas mortes praticadas por ação militar contra civil. Para se investigar a ação militar as forças militares da República Dominicana local iniciaram a investigação dos militares que participaram da operação culminando em condenações pífias e absolvição de um dos militares de um total de 5 condenados. A corte estabeleceu que a intervenção do foro militar na investigação desses fatos violou os parâmetros de excepcionalidade e restrição que devem caracterizar a competência desta jurisdição (a militar), tendo sido um dos fatores que culminou na impunidade do caso. Por essa razão, a Corte interamericana concluiu que o Estado violou os direitos às garantias de liberdade (artigo 7.5), garantias judiciais (artigo 8.1) e à proteção judicial (artigo 25.1), todos do Pacto de San Jose da Costa Rica[12]. Entendeu que a intervenção militar em investigações de civis é medida excepcional, tendo o país violado as próprias leis internas quando permitiram que a investigação fosse militar, ao revés de uma investigação civil, conforme se depreende de trecho da sentença, ipsis literis: Outrossim, insta salientar que esta Corte já estabelecera que, em razão do bem jurídico tutelado, a jusrisdição militar não é o foro competente para investigar e, no caso concreto, procesar e julgar os autores de violações de direitos humanos, e que a justiça militar somente pode julgar crimes militares ativos por seus órgãos se os delitos praticados tenham atingido bens jurídicos típicamente militares[13]. Seguindo precedentes, a Corte conclui que tanto as atividades realizadas por militares durante a investigação e o proceso do caso perante a justiça militar, incluindo-se os tribunais, representam um claro descumprimento da norma contida no artigo 2 da Convenção Americana, combinado com os artigos 8 e 25 do mesmo diploma. (tradução livre) Por este sentido, a corte estabeleceu que o Estado descumpriu sua obrigação de adotar disposições de direito interno, situação que foi remediada posteriormente pela República Dominicana, o que não tem sido realizado aqui no Brasil, quando nos deparamos com a polícia militar e forças armadas realizando verdadeiras violações de garantias fundamentais de uma devida investigação criminal, termo cunhado pelo professor Francisco Sannini Neto, corolário lógico do devido processo legal. No Brasil, ao contrário, alguns tribunais estaduais e, lamentavelmente, o Superior Tribunal Militar vêm não somente negligenciando uma interpretação teleológica continua na Constituição e leis infraconstitucionais, como também parecem desconhecer totalmente a jurisprudência vinculante da Corte Interamericana de Direitos Humanos. FONTE: site Consultor Jurídico, disponível em: http://www.conjur.com.br/2017-mar-01/academia-policia-investigacao-homicidio-militar-atentado-aos-direitos-humanos]]>

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